Valdete Roza é uma catadora brasileira e líder em sua cooperativa. Ela é pioneira em discussões de gênero com catadoras e catadores em toda a sua cidade e país.
Como mulheres trabalhadoras em todo o mundo, Valdete Roza se reveza apressadamente entre uma série de atividades domésticas — pendurar roupas recém-lavadas, fazer café da manhã e preparar ingredientes para o jantar — antes de sair de casa para ganhar dinheiro e ajudar a sustentar sua família.
Equilibrar essas responsabilidades é um desafio, especialmente quando seu trabalho como catadora é fisicamente exigente e, como tesoureira de sua cooperativa, a Atlimarjom, está constantemente elaborando estratégias para melhorar sua organização e seus 21 membros, 12 dos quais são mulheres. Ela usa sua posição de liderança dentro da cooperativa para apoiar suas colegas mulheres que trabalham duro. Valdete gostaria que elas conseguissem reconhecer sua própria dignidade e aumentar sua autoestima, o que, segundo ela, são passos revolucionários para o empoderamento econômico das mulheres.
Essa validação da força e da autovalorização das catadoras é essencial, diz, “para que possam crescer como pessoas, como seres humanos, dentro de suas cooperativas. Não é apenas o material [aspecto]. Precisamos cuidar da mulher porque é ela que cuida das pessoas. Por meio desse crescimento pessoal, ela terá crescimento econômico”.
Leia mais sobre como os(as) catadores(as) de materiais recicláveis estão ajudando a resolver a crise mundial de resíduos de plásticos nos oceanos.
Foto: Ana Carolina Ogando
Dignidade para um trabalho “sujo”
A questão de Valdete sobre o fortalecimento da dignidade e do autovalor das catadoras é especialmente importante. Esses(as) trabalhadores(as) estão entre os(as) moradores(as) urbanos mais pobres e são frequentemente subestimados(as) ou vistos pelo público como “sujos(as)”, apesar de seus esforços heroicos para manter as cidades limpas. Essas percepções externas podem ser facilmente internalizadas e, assim, é difícil para as mulheres reconhecerem as múltiplas forças que carregam dentro de si.
Valdete conhece bem essas batalhas. Ela passa 10 horas por dia separando as pilhas de resíduos da cidade e agregando valor ao que a sociedade descartou como rejeito— uma habilidade especial que parece marcar tudo o que Valdete faz.
Mas, como mulher, o trabalho nunca é apenas estar no trabalho. Enquanto faz seu trabalho árduo, ela ouve a conversa das mulheres ao seu redor: atualizações sobre um pai doente, noites passadas com as crianças no dever de casa, novas receitas sendo testadas e o nascimento de um bebê — tudo enquanto mantém um olho na oscilação dos preços para a venda dos materiais recicláveis e faz uma nota mental para organizar os pagamentos mensais dos membros.
Leia sobre os(as) catadores(as) no nosso Estudo de Monitoramento da Economia Informal (IEMS).
Foto: Gilberto Chagas
Enfrentando os desafios de gênero
Embora Valdete tenha dominado seu conhecimento sobre materiais recicláveis ao longo dos anos, primeiro ela teve que superar as dúvidas daqueles que já estavam no ramo, especialmente entre os homens. Quando começou na reciclagem, seus colegas homens faziam comentários sobre sua falta de conhecimento. “Muitos homens diziam: 'Ah Valdete, ela não vai ficar aqui, ela não sabe como lidar com todos os materiais'”, lembra.
Hoje, ela tria rapidamente materiais de todos os tipos, não apenas em grandes categorias, como metais, plásticos e vidro, mas em microseparações, dependendo do valor variável no mercado de recicláveis.
Apesar de seu trabalho árduo e de seu conhecimento, ela enfrentou muitas discriminações de gênero. À medida que foi conquistando sua posição de liderança dentro da cooperativa, Valdete foi enfrentando algumas situações, como relembra ela ao relatar a história de um homem chegando para trabalhar e dizendo que não receberia ordens de uma mulher “Eu disse: 'Escute, você vai sair daqui hoje. Olhe ao seu redor, você vê todas as mulheres trabalhando aqui? As mulheres são as líderes disso aqui; não tem homem liberando isso aqui não’” .
Valdete diz que é cercada por mulheres que estão lá por um motivo: elas precisam da renda. Muitas mulheres na cooperativa são as chefes de suas casas,, garantindo o sustento de suas famílias. "Elas estão aqui para comer. Elas não querem sua despensa vazia", diz Valdete. “Elas querem que seus filhos tenham material escolar. É muita luta. É uma luta constante. É uma luta de todas".
Mas Valdete aprendeu ao longo do caminho que mesmo com esses sacrifícios que as mulheres fazem, elas ainda precisam focar em seu próprio senso de valor e autoestima.
Leia mais sobre o empoderamento econômico das mulheres.
Foto: Gilberto Chagas
Criando espaços de protagonismos umas para as outras
Com seu próprio crescimento, Valdete agora tem como missão contribuir para a criação de espaços de empoderamento para as mulheres catadoras em sua cidade e em todo o Brasil. Ela quer que as mesmas vejam seu valor dentro de casa, no local de trabalho e na sociedade.
Em sua cooperativa e com o Movimento Nacional de Catadores no Brasil (MNCR), ela incentivou líderes de cooperativas de catadores de recicláveis próximos e distantes — tanto homens quanto mulheres —a começarem a discutir as dinâmicas de gênero na catação. Como co-coordenadora do Projeto de Gênero e Lixo, um projeto de pesquisa-ação participativo realizado com a WIEGO entre 2012-2015 com 67 mulheres de 41 cooperativas de catadores no estado de Minas Gerais, ela trabalhou duro para mobilizar catadoras e fazer a mudança acontecer.
As atividades pioneiras reuniram mulheres catadoras — muitas vezes pela primeira vez — para discutir os efeitos físicos e emocionais do trabalho de reciclagem; formas de violência de gênero, desde o bullying dos colegas até a violência doméstica; e a necessidade de que suas vozes sejam ouvidas em diversos níveis processos de tomada de decisões. Pela primeira vez, essas mulheres receberam um espaço seguro para serem ouvidas em assuntos que muitas vezes não são discutidos.
Ela se lembra de uma participante que trouxe à tona como as meninas são criadas de maneira diferente dos meninos — como meninas “têm que se comportar bem” e “brincar com certas coisas”. Valdete não tinha pensado muito sobre as origens da discriminação que todas enfrentam hoje. “Quando nos encontramos, isso ajuda, porque eu não tinha pensado nisso. É tipo 'Ah sim, eu não tinha pensado nisso, mas sim'. É como uma descoberta quando temos discussões de gênero”.
Outras mulheres compartilharam como superaram certos obstáculos em suas vidas. “Você desperta quando ouve falar de outra mulher que conseguiu algo. É tudo sobre o nosso fortalecimento ”, diz Valdete. “E você começa a ver o outro sob uma nova perspectiva. Então, começa a achar que é capaz".
Valdete diz que escutar é, na verdade, uma das partes mais poderosas do processo de empoderamento, porque “humaniza o trabalho” feito pelos(as) catadores(as), o que muitas vezes é invisível e agravado pela discriminação racial, étnica e de classe.
Leia mais sobre o Projeto de Gênero e Lixo da WIEGO.
Foto: Vanessa Pillay
Concebendo um mundo mais igual
Valdete continua seu trabalho para capacitar mulheres catadoras. Ela está focada em trazer mais homens para as discussões de gênero, já que esta é uma parte importante do processo de reconhecimento. Espera fazer mais workshops e processos de planejamento estratégico com mulheres líderes em outras cooperativas para se concentrarem não apenas em ganhar poder, mas também em treiná-las a acreditar em si mesmas. O resto, ela diz, vai acontecer a partir daí.
"Esse é o meu sonho", diz. “Que as mulheres se empoderem. Que esse empoderamento venha de dentro e não de fora, para que elas realmente sintam isso. Eu quero que levantem a cabeça e digam: 'Eu sou capaz. Não é porque sou negra, uma mulher, uma catadora que não sou ninguém. Eu sou capaz. Eu mereço respeito, sim, eu mereço'”.
Este artigo faz parte de uma série de um mês para o Dia da Mulher. Leia a peça de abertura aqui e a história de uma trabalhadora doméstica em Délhi aqui.
To read this article in English, see here.